September 26, 2008




«tu não te esqueces», dizia-lhe, «não fiques a recordar; se a
amas, trá-la de volta».












Nesse lugar, me sentei a copiar o Cântico,

porque copiar um texto
o abre sem o violar e, quando pensamos que o sabemos de cor,
muitas vezes adulteramos o que está escrito
mas esse adultério é pleno de ensinamentos, revela-nos o que
o nosso sexo de ler está vendo, ou desejando, em contraponto
à matéria do texto
e ao seu pensamento
____________ o motivo ou móbil por
que foi escrito
vai-se desenhando,
muito longe da mente e da letra da sua história;
como qualquer ser

o texto deseja ser copiado por gosto, ter a sua presença acentuada,
folheado e não desfolhado
cópia e criação
entre verde e poeira

lentamente, foi-me indicando pelas imagens que me suscitava
___________


este lento é também deveras surpreendente
quando o texto se escreve é veloz, e a agilidade é particularmente
conforme à sua natureza, as imagens
caem em catadupa na escrita ________ levantam-se como
poeira
e, colhidas ao ralenti,
a vê-las cair
o sexo de ler reconhece como a lentidão convém a quem se
abre
e foi-me indicando pelas imagens que me suscitava

que o Cântico que se coloca ao lado do criador foi escrito por
uma mulher não certamente jovem; insistia mesmo que a jovem
do texto que procura o seu amado o estava a procurar para
além da morte (ele ou ela? É ela que morreu primeiro)

que a matéria do texto era refulgentemente espiritual
e me lançava imagens bizarras, particularmente próximas da
difusão das árvores daquela clareira.

Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?, pp. 144-5

June 3, 2008


Prunus Triloba Plena



Tudo o que sinto, em minha volta, se torna sinónimo
de ser vivo. Em toda a forma, há vida e movimento,
compreensão e projecto, percepção e sensibilidade.
(...)
Mas parece-me que esta pedra, aquele gerânio sobre o parapeito,
Prunus Triloba Plena no jardim, e o riacho que corre
debaixo desta casa, não calcularam integralmente as consequências
do seu projecto. Não se aperceberam nunca que
uma vez chegaria o momento em que o homem os excluiria
da espécie única dos vivos, tornando-se o real comum
ainda mais opaco. Ouço Hamman perguntar-me com insistência
como foi possível tornar-se morta a língua da
Natureza. Essa língua morreu porque nós já não falávamos
com Ela, ou acontecera que a própria Natureza deixou
de falar? Quando é que o homem, de forma mais capaz,
se julgou forma única e exclusiva?.
Foi um momento funesto, porque na dobra não
reside só o segredo do nosso destino, das forças que nos
reduzem a pó sem nosso consentimento; aí reside igualmente
o segredo da nossa origem, das forças que nos puseram
em movimento, e nos dotaram para a acção. O homem
foi lançado para sonhar esse destino e continuar
o sonho da espécie viva.
Lansol, Finita, pp.150-2

May 11, 2008


Jodoigne, 3 de Março de 1976.


(...) O
sol atravessou-se na porta, as túlipas começam a aparecer
em frente da ampla janela da cozinha,
e eu penso no
antes,
e no depois
da casa.


Receio perder alguns textos a que chamo infantilmente
textos tulipais do mês de Março.
(...)
(...)
a meio da minha leitura tenho sede, e desejo de realizar um
dos muitos trabalhos quotidianos; afinal, desejo acrescentar
um enfeite, ou um detalhe, à já enorme deslocação da
casa; necessidade de completar, depois de ter querido
reduzir ao caótico, ao não significante.
Concluo que hei-de pagar aquilo que devo
por ler.
(Finita, Assírio e Alvim, pp.121-122)



Jodoigne, 22 de Dezembro de 1976.
Solstício de inverno.


(...)
Estou sentada na rocking chair da sala dos azulejos,
olhando «O Menino e a Pomba». Por que lhe chamo «O
Menino e a Pomba», se está de vestido comprido, até aos
pés. Recolho-me nos tons esverdeados cinzentos do fundo
da composição e o meu olhar desliza para as cores vivas da
bola que se afastam para fora do quadro. Fokouli brinca
com um vaso de plantas, no rebordo da janela que, daqui
a pouco, estará irremediavelmente caído no chão. Repreendo-
o, por ele ainda não ser uma dessas figuras que penetrou
pouco a pouco num reino em que as plantas e animais
falavam sem voz aguda nem silêncio acusador.
Acaba
por descer do parapeito e vir deitar-se no meu colo, pedindo-
me, ronronando, as pazes. E ficamos todos em silêncio,
com a noite silente junto de nós. Não posso saber
quanto tempo assim ficámos, até o Augusto dar por nós,
se admirar que estivéssemos no escuro, e acender a luz
baixa sobre a mesa. Lembro-me de, quando se fez luz, ter
olhado a intensidade com que tão cuidadosamente o Menino
segurava, com ambas as mãos, a Pomba. O Augusto
sentou-se e dei-lhe a ler o texto que escrevera e que ainda
se encontrava por arquivar ao lado da máquina de escre-
ver. Leu-o atentamente e, ao olhar para mim, contei-lhe o
sonho que tivera e o desejo intenso que sentira de comprar
a boneca. Sentia que se despia do seu mundo, para prestar
uma atenção toda aberta ao meu. Nos gestos imperceptíveis
que faz, mudando os pés de lugar, no modo como coloca
os dedos em volta do nariz e do bigode, no sorriso que
começa a sorrir a partir dos olhos e lhe vai descendo até às
extremidades da boca, sei então que me vai oferecer de
beber.
«Também queres chá?». Aceno que sim, e deixa-me
só para o ir preparar.

(Finita, Assírio e Alvim, pp. 141-142)

March 12, 2008

Instantes de luz


CVIII. outra sombra

_____ me encanta essa luz sobre a toalha de leitura

Llansol, Amigo e Amiga, p. 153

March 6, 2008

Aos Fiéis do Amor


Melissa, a guardiã

Lá fora, o dia fizera também a sua passagem. A noite dera lugar à manhã, a luz entrava no quarto. Na cama onde sempre sonhavas, escrevias agora o teu último sonho. Sentei-me na pequeníssima cadeira de criança, madeira pintada de vermelho e sol, e reuni à minha volta duas Damas do Amor Completo, as duas mulheres que eram há muito os dois lados do teu corpo.

Só agora vislumbro a cena fulgor, quase bíblica, que teve lugar.

Desejei ser a voz dos teus legentes, reuni-los em mais um encontro inesperado do diverso. Desejei que se sentissem convocados para a leitura, que viessem, como sempre, em busca da troca verdadeira.

Li para ti, Maria Gabriela, e para as árvores de Sintra, para Témia e Jade, para A. Nómada e o Menino literatura, para a Senhora decepada, para Ana e Myriam, para Bach e Aossê, Spinoza e Melissa, para todos os que a meu lado se dispunham a ouvir.



Era Parasceve, estávamos contigo À Beira do Rio da Escrita _____
Li as tuas palavras, em voz alta, como tantas vezes me pedias:



Façamos o que podemos fazer juntos, neste momento. Agora, que te dei as minhas imagens, procurando encontrar o seu ritmo... estou apenas nas tuas mãos,

Na minha voz e no meu pensamento...

Nas tuas mãos, insisto. O que ouves nas tuas mãos? Que diz a sua mão na tua?

Diz...

Por favor, ó mulher-mãe, lê alto o que ele te diz.

"Nasci no momento em que a tua boca encontrou o desejo amante do jovem jardineiro. Fui aquecido e retido por faixas cerradas de língua perfumada e, finalmente, nasci aqui, neste balouço de terra. Foi tudo tão rápido, tão inocente, fora de qualquer contexto de estadia permanente que decidi perscrutar o sucedido, onde nada acontece. O que havia, em tempos idos, para contar, tinha apodrecido, nem a memória ousava meditá-lo. Mas a memória veio sob outra forma de reconhecimento do real. Entregou-se-me totalmente para que eu a mudasse, e lhe desse um nome de pessoa virgem. Sempre me deu o sentimento de que havia um ritmo. Uma beleza inesquecível. Que a palavra era apenas uma parte da sua respiração. Era certamente o «desconhecido desconhecida» que eu viera buscar no beijo que abrira a porta da vida. Era muito forte, extremamente forte, o apelo que exerce sobre os da minha espécie, já noutro lugar."

É o que a sua mão diz na tua?

Sim, chegou a minha hora de atravessar a ponte.

Não te posso acompanhar.


As imagens soam-me no movimento do ouvido e da mão. Sou a mulher deste texto. Vou a caminho da ponte que ele me indicou e para a qual me escreveu, e de que, outrora, tive uma breve e confusa visão. Espero ter coragem. Estou a escrever-te, ó texto. Escorada no meu íntimo, respirando pelo corpo com que avanço, decido empreender, com os cinco dedos da minha mão nua, uma acção sem mescla.

Distinguir e contemplar.

Percorro com o olhar o que logo ao olhar pertence,

saio para a superfície alegre do dia de nevoeiro, verifico que não quero outro percurso até ao cais onde há ainda barcos que transportam peixes em baldes, e os soltam no mar.

Esse movimento, inverso do habitual,
pescar peixes e lançá-los ao mar,
faz-me sorrir,
tanto se parece esse movimento inverso com o ritmo que procuras, meu texto.

E volto a sentir a mão. Um Alguém-mão que vem ao meu encontro e fica comigo a conversar.

Fluxo e refluxo.
Ruído e som.
Emanação e ruah.

Que concluir quando a tua mão me diz: «Faz vento, mas só de passagem?»
De facto, nem vento faz.
É a respiração dispersa que sopra,

sento-me entre ela e a porta aberta, o rio que corre à minha frente, até chegar a hora propícia da travessia.

Sei agora, ó texto, o que meu filho me dirá.
Chamarei por ele: «Parasceve!»,
e ele dir-me-á: «Sim, mãe».



Serra de Sintra, 24 de Novembro de 2000

Serra de Sintra, 3 de Março de 2008