March 20, 2007


sumário lírico

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,

começo devagar a reescrever o mundo quedo

que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.

Ninguém me deu outras formas que não minhas

mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.


Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.

E recordo-me dos outros de fora da vidraça, mudos

mas autores cada um do seu frasear, generosos

quando me reconheciam em muitos anos de vida.

Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues vozes


caladas para sempre nos livros em que as lera.

Em tantas vidraças que espelharam caras, olhos

de cada olhar de imagens próprias de cada um.

Estava no longínquo fundo o mar redito, o sol,

os barcos na Barra, que também em vidros estavam.


Passa tu, golfinho, piloto cego, depois cadáver,

que talvez me conduzisse entre os barcos da Barra,

quando o dorso de prata e o gume passavam

nas horas visuais das manhãs de Junho e Julho minhas,

de par em par o olhar aberto ao ar do sol do sal.


Imagens que sempre ficais nestas vidraças,

emprestai vosso vidro e revérbero à luz

do farol extinto, em outras vidas que antes

narravam que eu era já nascida,

quando vos vi, farol, e vos guardei, imagens.


A cor de prata dos vultos é hoje negra, manchas

com a noite embebida, tantas vezes co-substancial.

É assim que a vidraça anoitece diante dos olhos,

diariamente somando anos, minutos indivisos.

Mas, cisco no vidro, pela lei da perspectiva, ponto.


Avança pelo estuário, golfinho entre golfinhos,

um, o que passou pelo interior de meu corpo,

menos vasto do que o mar, menos amplo do que o teu,

ó marca preta em vidro tão fosco de impreciso,

fosco de haver nevoeiro e esquecimento e fumos.


Recordo-me, reúno vogais, consoantes, de com a testa estar

Na vidraça a murmurá-las, tão similares

Em eco, a última, na eufonia de fumos e de bruma.

Último golfinho, afinal, diminuto ou imenso

Que lacerou com o triângulo da cauda as brumas.


Estou no estuário, com rio e mar, onde nós

antes estávamos, balbuciantes, entre falar e ver.

Depois, um poema houve, das doces salinas águas.

Mas o farol assente no rochedo, torreões, muralhas, sóis,

tudo é o cisco de agora para a unha num vidro.


E não avanço enquanto estiver presa à grua hodierna

que arranca as palavras do seu molde de coisas,

quando com os filhos ou amei ou vi a construção civil,

numa praceta inócua para a minha vida lírica.

Pois nada equivale ao vidro da vidraça do mundo.


Tenho cada vez mais modos de dizer das fileiras

de golfinhos ou o primeiro assombro. E entretanto

por detrás da vidraça passam na janela, onde o ouvido

houve no canto a sua homófona, ouve a melancolia

dos silvos de eu chorar os barcos dos pilotos,


únicos que navegaram no sal deste choro antes.

Qualquer vidro ressuma por dentro o seu frio exterior.

Barcos para África, entre torre e farol, levarem

vi vil guerra, armas de dor, morte poeirenta.

Mas hoje é a doença a singrar nessa rota pobre


que na vidraça perpassa, como golfinhos mortos

que voltassem, em cortejo, a serem vistos, perdidos

sob ti, Cassiopeia, que ainda estás aqui no vão da noite.

Estás a ter sido, a perdê-lo, a recuperá-lo, tu,

o eco do mar, quando te vi estar. Constelação


que no quadrante do céu, como em ardósia coloca

a sua letra, desde que soletrei no vidro o mar.

Tergiverso do campo para a cidade. Meu sonho

apenas poema, como todos fatal porque me destina.

Tenho de compilar cidade, guindastes, pomba, olhos


desses filhos discípulos do meu olhar. Imóveis

ficámos todavia noutro poema. Mas o anterior a filhos,

meu pensamento só, jorrava já em versos meus

concitados por esta janela velha, onde somente posso

retroceder, página a página, ao longo do meu tempo.


E o tempo não existe quando tudo se reúne.

Mas as frases de todos estão no lugar, meus poetas,

sendo o olhar sempre o puro tacto, quando o som

sai desta boca, sopro, e toca em sons e seres.

A faixa solar vermelha é um profundo fundo, só sonoro


e tangível na boca. E morrerei sem lançar um som vivo

para África, neste sumário lírico, redito.

Satisfaz-me o eu sol vermelho em mês de pouco ver,

pois passavam golfinhos antes de ter havido sol assim,

e mudamente vistos: imagem tão íntegra, lírica


que vai descer à boca em última palavra minha.

Maio de 1998

Fiama Hasse Pais Brandão, Cenas Vivas


March 16, 2007


O caminho está orvalhado. A saia molha-se entre as espigas inclinadas para a terra batida. A minha mente esclarece-se com o andar apoiado no meu pé direito. É ele o primeiro a envelhecer o sapato que o protege. É ele que fende o vento, trazido pelas árvores adversas. O sentido contrário é excelente para a clareza do pensamento. Jade abeira-se; quer entender a novidade que esconde esta marcha relativamente matinal:
- Então, vamos para Herbais?
- Sim, para o interior, para uma espécie de sertão de planícies.
- Porquê este povoado ignoto a três quilómetros?
- Porque há nele uma casa que vamos pintar e tornar habitável.
- O cheiro que vem dela não me agrada. Não respeita qualquer contrato.
- Vai ser bom, verás. Exercitaremos os pés por entre imagens, e as mãos sobre a escrita.

Llansol, O Senhor de Herbais, p. 37


March 15, 2007

Continuo a pensar que a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas.

Llansol, O Senhor de Herbais, p.48







March 11, 2007

Ver é fulminantemente belo, como maravilhosa é a qualidade da visão.

Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?, p. 216


Há uma intimidade entre a memória do olhar e a memória da consciência________quanto mais intimidade uma coisa ou obra tem, quanto mais a imagem que decai se lembra da explosão de luz
que a deu à consciência,

tanto mais age e menos perece e sofre.


Llansol, O Jogo da Liberdade da Alma, p. 75


Ler é trazer a si, mas não cenas e imaginação.Trazer o real de outra vida que nos chame humanos.

Llansol, "O pensamento de algumas imagens", in Restante Vida, p. 113