January 28, 2007


Il n'y a peut-être pas de jours de notre enfance que nous ayons si pleinement vécus que ceux que nous avons cru laisser sans les vivre, ceux que nous avons passés avec un livre préféré.


Proust, Sur la lecture



Menez



"que não se muda já como soía"













Alentejo (Alqueva), Janeiro de 2007

January 27, 2007


EPOCHÊ


_____________________________ o irritante traço contínuo.


É apenas uma dobra e um baraço. O texto dobra, efeito de colagem. O texto suspende o sentido, à espera de dizer exacto. Há frases que só completei anos depois; há frases que, no limiar dos mundos, não devem ser escritas por inteiro; há frases cujo referente de sentido será sempre obscuro. Se eu pretendesse escrever um texto sempre limpo - tiraria o traço. Onde não soubesse, nada escreveria. Mas como iria saber que ali não soube, ou nem sequer me pertencia saber? O texto é limpo, e por passajar. Onde o traço é apagado, vê-se claramente o raspar da borracha. Deixar o traçado.


Llansol, Inquérito às Quatro Confidências, p. 75

January 26, 2007


Modos de ler I

_________ acabo de encontrar Bilha no meu caminho (...) e sei que esta bilha é um vaso de barro - e uma oferta.
(...) Bilha serve, serve ao meu olhar inteiramente enamorado da sua forma. É bojuda, com um gargalo, é pesada, com asas (...).
Tratarei de muitos assuntos diferentes numa só bilha. Por vezes, serão de intensidades diferentes, e de sentidos contrários. Este é um vaso daqueles que os professores de desenho, pela sobriedade e beleza da forma, costumam dar aos seus alunos como modelo. (...)
Os objectos escavam o espaço, e ocupam nele um lugar. (...) Vistos assim, são o mundo físico da inteligência atravessando a luz.
E Bilha, não na sua forma, mas no seu nome, lembra-me o sapo que brilha porque ambos são afectos à humidade.
(...) Ana perguntou a Myriam qual era o nome daquilo. «Bilha», respondeu ela, indo dos olhos à palavra. «Ler é a irradiação de um som, e de objectos»,
comprovou Ana,
«ou, então, nada se houve.»

Llansol, O Raio sobre o Lápis, pp.51-53



modos de ler II

uma chave que um raio de sol ilumina, ficou à beira da mesa; pego na chave e vejo, noutro móvel, um cofre; desce sobre mim a ideia de que a chave que tenho na mão abre esse cofre; corro a lingueta da sua fechadura; dentro, há chaves maiores com que me volto para uma porta; abro essa porta, e aproximo-me de uma janela que dá entrada num espaço - solo neutro onde está sobre um tapete uma moeda de cobre; pego na moeda e meto-a na fenda da próxima porta; movo-me com segurança por entre pensamentos alternativos, com a certeza de que a ideia seguinte penetrará ainda mais no íntimo, e é o resultado de eu ter seguido o raio de sol no início.

Llansol, O Raio sobre o Lápis, pp. 28-29


modos de ler III


________
a gaivota veio sozinha e parou junto de outra, ligeiramente afastada da orla marítima; uma aproximou-se da faixa de espuma, e areia húmida - a outra voou: voou sobre a praia, e veio pairar num rochedo ao meio de uma camada pouco profunda; andou de novo para o mar, num deslizar de vulto lavrado; a primeira fazia círculos e, quando acabou, aproximou-se de outras que já estavam nos penhascos mais longe.
Cada gaivota voltou à praia. Eu ia cair no erro de julgar que era sempre a mesma gaivota, mas a maior parte das vezes era uma gaivota diferente.


cópia da imagem que tenho de uma gaivota
perfeitamente igual ao que eu julgo ser uma gaivota.

Llansol, O Raio sobre o Lápis, p.70


January 25, 2007



trazer de volta III ou A dobra do mundo





trazer de volta II


...eu ia a dizer que, nesta ordem de ler, ler é nunca chegar ao fim de um livro respeitando-lhe a sequência coercitiva das frases, e das páginas. Uma frase, lida destacadamente, aproximada de outra que talvez já lhe correspondesse em silêncio, é uma alma crescendo. Eu não consigo abranger a infinitude do número e da harmonia das almas, nem a terra de um jardim que se mantém há gerações.


Llansol, Amar um Cão



Trazer de volta

O que aprendi com Teresa? Que a ressurreição não é um acto de potência divina, mas a suprema manifestação de amor. Dar a vida não chega, não é um acorde consonante com a substância. Ressuscitar, sim, é o acorde perfeito.
Mais adiante, o texto falar-nos-á de uma rapariga.
Ele entra, e diz-me:
- Sim - diz-me ela, pousando as mãos nos meus joelhos:
- Desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e que seja um homem.
- Alguém que queira ressuscitar para ti?
- Sim. Alguém que tenha para comigo essa memória.
(...)
se não há ressurreição, a bondade é tão inútil
como um legente sem a jubilatio de existir.


Llansol, O Jogo da Liberdade da Alma, pp. 21-22


January 21, 2007