May 11, 2008


Jodoigne, 3 de Março de 1976.


(...) O
sol atravessou-se na porta, as túlipas começam a aparecer
em frente da ampla janela da cozinha,
e eu penso no
antes,
e no depois
da casa.


Receio perder alguns textos a que chamo infantilmente
textos tulipais do mês de Março.
(...)
(...)
a meio da minha leitura tenho sede, e desejo de realizar um
dos muitos trabalhos quotidianos; afinal, desejo acrescentar
um enfeite, ou um detalhe, à já enorme deslocação da
casa; necessidade de completar, depois de ter querido
reduzir ao caótico, ao não significante.
Concluo que hei-de pagar aquilo que devo
por ler.
(Finita, Assírio e Alvim, pp.121-122)



Jodoigne, 22 de Dezembro de 1976.
Solstício de inverno.


(...)
Estou sentada na rocking chair da sala dos azulejos,
olhando «O Menino e a Pomba». Por que lhe chamo «O
Menino e a Pomba», se está de vestido comprido, até aos
pés. Recolho-me nos tons esverdeados cinzentos do fundo
da composição e o meu olhar desliza para as cores vivas da
bola que se afastam para fora do quadro. Fokouli brinca
com um vaso de plantas, no rebordo da janela que, daqui
a pouco, estará irremediavelmente caído no chão. Repreendo-
o, por ele ainda não ser uma dessas figuras que penetrou
pouco a pouco num reino em que as plantas e animais
falavam sem voz aguda nem silêncio acusador.
Acaba
por descer do parapeito e vir deitar-se no meu colo, pedindo-
me, ronronando, as pazes. E ficamos todos em silêncio,
com a noite silente junto de nós. Não posso saber
quanto tempo assim ficámos, até o Augusto dar por nós,
se admirar que estivéssemos no escuro, e acender a luz
baixa sobre a mesa. Lembro-me de, quando se fez luz, ter
olhado a intensidade com que tão cuidadosamente o Menino
segurava, com ambas as mãos, a Pomba. O Augusto
sentou-se e dei-lhe a ler o texto que escrevera e que ainda
se encontrava por arquivar ao lado da máquina de escre-
ver. Leu-o atentamente e, ao olhar para mim, contei-lhe o
sonho que tivera e o desejo intenso que sentira de comprar
a boneca. Sentia que se despia do seu mundo, para prestar
uma atenção toda aberta ao meu. Nos gestos imperceptíveis
que faz, mudando os pés de lugar, no modo como coloca
os dedos em volta do nariz e do bigode, no sorriso que
começa a sorrir a partir dos olhos e lhe vai descendo até às
extremidades da boca, sei então que me vai oferecer de
beber.
«Também queres chá?». Aceno que sim, e deixa-me
só para o ir preparar.

(Finita, Assírio e Alvim, pp. 141-142)