January 26, 2007


Modos de ler I

_________ acabo de encontrar Bilha no meu caminho (...) e sei que esta bilha é um vaso de barro - e uma oferta.
(...) Bilha serve, serve ao meu olhar inteiramente enamorado da sua forma. É bojuda, com um gargalo, é pesada, com asas (...).
Tratarei de muitos assuntos diferentes numa só bilha. Por vezes, serão de intensidades diferentes, e de sentidos contrários. Este é um vaso daqueles que os professores de desenho, pela sobriedade e beleza da forma, costumam dar aos seus alunos como modelo. (...)
Os objectos escavam o espaço, e ocupam nele um lugar. (...) Vistos assim, são o mundo físico da inteligência atravessando a luz.
E Bilha, não na sua forma, mas no seu nome, lembra-me o sapo que brilha porque ambos são afectos à humidade.
(...) Ana perguntou a Myriam qual era o nome daquilo. «Bilha», respondeu ela, indo dos olhos à palavra. «Ler é a irradiação de um som, e de objectos»,
comprovou Ana,
«ou, então, nada se houve.»

Llansol, O Raio sobre o Lápis, pp.51-53



modos de ler II

uma chave que um raio de sol ilumina, ficou à beira da mesa; pego na chave e vejo, noutro móvel, um cofre; desce sobre mim a ideia de que a chave que tenho na mão abre esse cofre; corro a lingueta da sua fechadura; dentro, há chaves maiores com que me volto para uma porta; abro essa porta, e aproximo-me de uma janela que dá entrada num espaço - solo neutro onde está sobre um tapete uma moeda de cobre; pego na moeda e meto-a na fenda da próxima porta; movo-me com segurança por entre pensamentos alternativos, com a certeza de que a ideia seguinte penetrará ainda mais no íntimo, e é o resultado de eu ter seguido o raio de sol no início.

Llansol, O Raio sobre o Lápis, pp. 28-29


modos de ler III


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a gaivota veio sozinha e parou junto de outra, ligeiramente afastada da orla marítima; uma aproximou-se da faixa de espuma, e areia húmida - a outra voou: voou sobre a praia, e veio pairar num rochedo ao meio de uma camada pouco profunda; andou de novo para o mar, num deslizar de vulto lavrado; a primeira fazia círculos e, quando acabou, aproximou-se de outras que já estavam nos penhascos mais longe.
Cada gaivota voltou à praia. Eu ia cair no erro de julgar que era sempre a mesma gaivota, mas a maior parte das vezes era uma gaivota diferente.


cópia da imagem que tenho de uma gaivota
perfeitamente igual ao que eu julgo ser uma gaivota.

Llansol, O Raio sobre o Lápis, p.70