October 30, 2007





Partícula 62 — A oscilação desce

O primeiro movimento da manhã é a escolha do vento; nada é indiferente
ao corpo que acorda para mais uma descida pela vida; no ritmo da
cor, escolhe um tecido, e seu feitio presente. Fica cingida a ele, desnuda a
própria face.
A caneta interrompe a narrativa do diário em bruto. O quarto vibra em
tumultuoso silêncio. Deste modo se levanta e caminha para a visão que
lhe é preciosa, tanto quanto a palavra da sua língua, tanto quanto a companhia
dos companheiros ausentes e presentes.
Escreve no registo para as compras do dia
grão,
batatas,
água.

Llansol, Os Cantores de Leitura, p. 155

October 27, 2007




OS CANTORES DE LEITURA




seu contexto:

— Por que razão continuar sempre a ler?
Sim, Cirilo, admito que o ler corrente é procurar um duplo.
Seria narcísico se lêssemos sem esforço. Mero prazer
de identificação, não achas? Mas, neste ler saudado pela
Casa, eu identifico-me com a ansiedade amorosa da procura.
O texto que leio ama-me? Ou não me ama? O que
alcançarei quando atingir o seu sexo? O ligar ao prazer do
meu, que é verdadeiramente _____
— O querer dormir com ele?
— Sim, Cirilo, é isso. Ler, para mim, é uma espécie de
imaginação mimética entre duas identidades.
— Um espasmo ao fim da luta? — perguntou Cirilo,
enredado no fumo do charuto, que dava um certo ar deslocado
a esta conversa. Mas eles eram assim rasgados em
perfil humano,
embora suas vozes revelassem, ao fim da execução, o que
tinham conseguido com a idade crítica do canto.
«Não desvies a conversa», disse para mim Cirilo, que
introduzira a pergunta:
— Por que razão continuar sempre a ler? — Eu dobrei-
me sobre o meu papel, e continuei a anotar:
— Deitado o livro sobre a minha cama, ou seja, os
meus joelhos, a primeira pergunta que faço é «se ele está
vivo.» Se sinto que me leva é porque leio «vivo porque caí
no vivo.»
— Ah, sim! Livros também caem no regaço de mortos
— disse Cirilo displicente, cortando a ponta do charuto.
— Tens um para mim? perguntou Celso.
— Quem mo deu foi Angelikos.
— Esse, corta a leitura com o acerado das asas.

— Que queres dizer?
— Que a reescreve num segundo andamento.
— Mas a voz mais pousada que retira o texto do papel,
e o deixa incólume, é a de Oressa.
— A recém-chegada Oressa.
— Que faz circular entre nós um desejo contínuo de
leitura.
— É talvez por ser negra. Proteger. Desculpar. Impedir.
Proibir.
— Ultrapassar.
— Espoliar. Estar situado defronte.
— Já pensei. Se o acto de ler não é uma desfloração.
— Angelikos vem aí, e vai degelar nossa conversa.
— Para mim, ler é combustão activa com chama —
disse Angelikos. — Deu um charuto a Celso, e guardou
outro para si. — Continuaram a falar e a fumar os três,
embora soubessem que o fumo é inimigo da voz. Seu
canto perdeu a forma própria mas, vistos assim os três, de
cabeças próximas _______
alguém oculto escrevia, num local onde se queimam substâncias
que, em breve, lhes daria a ler _______

Llansol, Os Cantores de Leitura, pp. 176-177